Agência Brasil – Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia do Senado, nesta terça-feira (28), a advogada Bruna Morato, que representa um grupo de ex-médicos da Prevent Senior, afirmou que os profissionais não tinham autonomia para retirar medicamentos do kit covid ou pedir exames para os pacientes. Segundo a advogada, a empresa punia com demissão quem descumprisse a orientação de prescrever o conjunto de medicamentos sem eficácia.
“Não existia autorização para fazer determinados exames. Se prescrevia hidroxicloroquina sem a realização do eletrocardiograma. Existia a dispensação de ivermectina, e o médico não tinha autonomia para retirar esse item. Os médicos eram orientados à prescrição do kit, que vinha num pacote fechado e lacrado. Quando o médico queria tirar algum item, ainda que ele riscasse (sic) na receita, o paciente recebia completo. A receita também já estava pronta”, denunciou Bruna Morato.
A advogada entrou no radar da comissão por representar um grupo de 12 ex-médicos da operadora de saúde e ter ajudado a elaborar dossiê reunindo supostas irregularidades cometidas pela empresa. Com base nesse documento, denúncias de realização de experimentos com pacientes sem autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e de alteração de dados de atestados de óbito de pacientes vítimas do novo coronavírus estão sob investigação.
CID
A advogada afirmou que a Prevent Senior alterava a Classificação Internacional de Doenças (CID) no prontuário dos pacientes, retirando a menção à covid-19, “para que houvesse uma falsa sensação de sucesso em relação ao tratamento preventivo”. Segundo a advogada, partiu da Diretoria Executiva da operadora a ordem para os médicos omitirem das declarações de óbito a covid-19 como causa de morte. Todas as denúncias foram negadas pelo diretor da Prevent, Pedro Batista Júnior, que depôs na comissão na semana passada.
Sobre qual seria a relação da Prevent Senior com o governo federal e o suposto gabinete paralelo, a advogada disse desconhecer uma relação direta entre eles. “ As informações que tenho são que eles [Prevent Senior] colaboraram de forma muito efetiva para a divulgação de informação sobre a eficácia do tratamento precoce”, relatou.
Má-fé
À CPI, Bruna Morato ressaltou que a maior parte dos clientes da operadora é idosa, o que torna a prescrição do kit covid, cuja eficácia não tem embasamento científico, ainda mais perigosa. “A Prevent Senior é um plano em que a faixa etária média é de 68 anos. Os pacientes que utilizavam esses kits já tinham muitas comorbidades associadas. O conjunto de medicamentos, apesar de ser ineficaz, se tornava potencialmente letal para aquela população”, avaliou a advogada.
Sobre um dos diretores da Prevent Senior, identificado como Felipe Cavalca, Morato disse que ele encaminhou mensagens em que orientava médicos do plano de saúde a não informar a pacientes e familiares sobre os riscos do tratamento com o kit covid. Segundo a depoente, os usuários “foram ludibriados” para assinar termos de consentimento para a realização de estudos sobre os medicamentos ineficazes.
“O paciente idoso é extremamente vulnerável. Eles não sabiam que seriam feitos de cobaia. Eles sabiam que iriam receber medicamentos. Isso são coisas diferentes. Quando chegava para retirar o medicamento, era passada a seguinte informação: ‘Para retirar essa medicação, o senhor precisa assinar aqui’. Eles não tinham ciência de que esse “assina aqui” era o termo de consentimento”, detalhou a depoente.
Custos
Questionada sobre os motivos que teriam levado a Prevent Senior a prescrever o chamado kit covid, a advogada respondeu que a medida era uma estratégia para evitar a internação de pacientes nos hospitais da rede e, com isso, permitir a redução de custos. “As mensagens de texto disponibilizadas à CPI mostram que a Prevent Senior não tinha a quantidade de leitos necessários de UTI e, por isso, orientava o ‘tratamento precoce’. É muito mais barato você disponibilizar um conjunto de medicamentos aos pacientes do que fazer a internação desses pacientes. Era uma estratégia para redução de custos”, afirmou.
Acordos
Questionada se procurou o jurídico da Prevent Senior para tratar a questão que era alvo de queixas de médicos, ela disse sim. A ideia, contou, era fazer um acordo que, segundo ela, nunca foi financeiro. A advogada afirmou que seus clientes pediram que a empresa tomasse três atitudes, mas não houve sucesso. Os pedidos eram que a Prevent Senior assumisse publicamente que o estudo sobre “tratamento precoce” foi inconclusivo, além de assumir o protocolo institucional da empresa, deixando claro que os profissionais não tinham autonomia. Os médicos também exigiam que a empresa fizesse um documento se responsabilizando a arcar com custos de possíveis processos vindos de famílias das vítimas.
A advogada disse que, no início da pandemia, o diretor da Prevent Senior, Pedro Batista Júnior, tentou se aproximar do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que havia criticado a empresa após várias mortes por covid-19 no hospital Sancta Maggiore, em São Paulo.
Segundo Bruna Morato, sem êxito na aproximação com Mandetta, a Prevent teria fechado uma “aliança” com um grupo de médicos que assessorava o governo federal, “totalmente alinhados com o Ministério da Economia”. “Existia um interesse do Ministério da Economia para que o país não parasse. Existia um plano para que as pessoas pudessem sair às ruas sem medo”, explicou com a ressalva de nunca ter ouvido o nome do ministro Paulo Guedes nas conversas.
A advogada explicou à comissão de inquérito o papel de cada um dos médicos que assessorava o governo federal na defesa da adoção de um tratamento precoce para Covid-19. Durante o depoimento, ela disse que o médico toxicologista Anthony Wong, que morreu por complicações do novo coronavírus, era responsável por desenvolver um “conjunto medicamentoso atóxico”. A médica imunologista Nise Yamaguchi, por disseminar informações sobre a resposta imunológica; e Paolo Zanotto, virologista, falaria sobre o vírus de forma mais abrangente. Nas palavras da advogada, a Prevent Senior fez um “pacto” para colaborar com essas pessoas. “A economia não podia parar, e eles tinham que conceder esperança para que as pessoas saíssem para as ruas. E a esperança tinha um nome: era hidroxicloroquina”, contou. Procurado pela Agência Brasil, até o fechamento desta reportagem, o Ministério da Economia não havia se manifestado sobre as declarações.
A advogada também contou aos senadores que se sentiu ameaçada após a divulgação pela imprensa das denúncias dos médicos, em abril. Ela relatou que, depois desse momento, seu escritório foi invadido por uma “quadrilha muito bem estruturada”. Os invasores, disse, duplicaram o IP de todas as câmeras e deixaram o sistema de segurança vulnerável por quatro dias. Além disso, ela relatou que canos foram cortados causando inundação de vários andares do prédio onde fica o escritório. De acordo com Morato, apesar de terem levado apenas um iPad e um computador “sem memória”, a ação teria sido uma tentativa de intimidá-la. “Não posso afirmar qualquer relação com a empresa, mas aconteceu, e desde então, tenho me sentido ameaçada”, admitiu.
Ives Gandra
Na reta final dos trabalhos, que devem ser concluídos no início de outubro, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), fez um apelo para que a CPI tenha isenção e imparcialidade nos trabalhos e no relatório final a ser votado. Segundo ele, o documento que está sendo elaborado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) “não pode ter natureza de sentença”.
Bezerra Coelho disse que fez uma consulta ao jurista Ives Gandra Martins sobre o andamento da CPI da Pandemia. Segundo o parlamentar, a avaliação do jurista é que a comissão trabalha com “viés político” e não deveria tomar unicamente o caminho da criminalização. Para contrapor argumentos jurídicos preparados com a coordenação de outro jurista, Miguel Reale Junior, consultado pela cúpula da CPI, o emedebista defendeu que Gandra seja ouvido no colegiado.
“Creio que a opinião do doutor Ives Gandra Martins poderá contribuir muito com os trabalhos da comissão e mesmo na elaboração do relatório final para que não enveredemos pelos caminhos duvidosos das preferências e dos juízos prévios em detrimento dos fatos, da legalidade e da Constituição”, defendeu Bezerra.
Em resposta, o presidente da comissão, senador Omar Aziz(PSD-AM), destacou que “fatos são fatos” e citou os quase 600 mil mortos em decorrência da pandemia.
Teoria da conspiração
Durante o depoimento, o senador governista Marcos do Val (Podemos-ES) pediu ponderação aos membros da CPI sobre as denúncias envolvendo a Prevent Senior e disse que o caso parece mais “uma teoria da conspiração”. Ele questionou o fato de a advogada representar 12 médicos que acusam a operadora, enquanto 5 mil profissionais que exercem essa função ainda continuam ativos na rede. “Eu acho que é uma porcentagem muito pequena para a gente achar que a exceção é a regra. Porque não é possível que 5 mil médicos estariam em silêncio, compactuando com tudo isso que está sendo dito”, argumentou sob protestos do grupo de senadores independentes.
Requerimentos
O senador Humberto Costa (PT-PE) afirmou durante a reunião de hoje que, no dia da demissão de Mandetta, que havia feito críticas ao hospital comandado pela Prevent Senior em São Paulo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) liberou a utilização do kit de “tratamento precoce” contra a covid-19. Para o senador, o governo federal e o gabinete paralelo que agia junto ao Ministério da Saúde atuaram em conjunto com o CFM e a Prevent Senior, num “planejamento criminoso”.
Diante da suspeita, a CPI aprovou requerimento de Costa para que a operadora de saúde apresente os termos de livre consentimento do kit à CPI no prazo de 24 horas. Ele lembrou que o CEO da Prevent Senior, durante depoimento na semana passada, mostrou uma pilha de papéis que declarou serem consentimentos de pacientes e familiares para os tratamentos experimentais oferecidos pela Prevent Senior. Os documentos não foram entregues à CPI.
Os senadores também aprovaram outros dois requerimentos do vice-presidente do colegiado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). O primeiro prevê a convocação do empresário Otávio Oscar Fakhoury, que seria financiador de canais de disseminação de notícias falsas.
O outro pede o compartilhamento de dados obtidos pela Operação Pés de Barro, da Polícia Federal. A investigação apura fraudes na aquisição de medicamentos de alto custo pelo Ministério da Saúde durante a gestão do ex-ministro e atual líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR).